Núcleo de estudos de problemas espirituais e religiosos (Neper)

Núcleo de estudos de problemas espirituais e religiosos (Neper)

Revista de Psiquiatria Clínica VOl. 27, n.2, Março/Abril de 2000 – Alexander Moreira de Almeida(1) / Hyong Jin Cho(2) / Jorge W. F. Amaro(3) / Francisco Lotufo Neto(4)

1 Residente
2 Residente
3 Professor Associado
4 Prof. Dr. Coordenador do Amban Departamento de Psiquiatria da FMUSP
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas – FMUSP
Rua Dr. Ovídio Pires de Campos s/no CEP 05403-010 – São Paulo, SP

As dimensões espirituais e religiosas da cultura estão entre os fatores mais importantes que estruturam a experiência humana, as crenças, os valores, o comportamento e os padrões de adoecimento (Lukoff, 1992; Sims, 1994; Amaro, 1996; Weaver, 1998). Apesar disso, a psiquiatria, em seus sistemas diagnósticos, bem como em sua teoria, pesquisa e prática, tende a ignorar ou a considerar patológicas as dimensões religiosas e espirituais da vida (Lukoff, 1992; King, 1998). Assim como a religiosidade é tradicionalmente vista de modo negativo pela psiquiatria, as experiências místicas e espirituais são tidas como evidências de psicopatologia (Lukoff, 1992).

Fato relevante é que essas visões negativas da religião e da espiritualidade não se mantêm à luz de recentes estudos que não encontram associação entre esses fatores e a psicopatologia (Lotufo Neto, 1997). Para a maioria das pessoas, religião e espiritualidade são mais fonte de suporte e bem-estar que evidência de psicopatologia (Lukoff, 1995). Trabalhos têm relatado que pessoas que vivenciam experiências místicas pontuam menos em escalas de psicopatologia e mais em medidas de bem-estar psicológico que controles (Lukoff, 1992). Levantamentos da última década têm mostrado que experiências extra-sensoriais dissociativas são comuns na população geral (Ross, 1990; Ross, 1992;Levin, 1993) e, freqüentemente, não estão associadas a transtornos psiquiátricos em populações não-clínicas (Heber, 1989).

A despeito dessas sinalizações que apontam para uma mudança de postura diante dos fenômenos religiosos e espirituais, revisões sistemáticas em quatro das mais importantes revistas de psiquiatria do mundo expuseram um quadro preocupante. Larson (1986) detectou que apenas 2,5% dos artigos dessas revistas, entre 1978 e 1982, utilizaram alguma variável religiosa. Uma repetiçãoda mesma pesquisa, abrangendo de 1991 a 1995, apontou uma queda para 1,2% (Weaver, 1998). E mesmo essa minoria de artigos que utilizou alguma variável religiosa geralmente o fez por meio de um único item, ao invés dos métodos multidimensionais, que são os mais indicados para pesquisas em religião (Larson, 1986; Lotufo Neto, 1997; Weaver, 1998).

A Associação Psiquiátrica Americana deu um passo importante na revisão dessa insensibilidade cultural da psiquiatria ao incluir no DSM-IV uma nova categoria diagnóstica: Problemas Espirituais e Religiosos, que foi incluída no eixo I, no item “Outras condições que podem ser um foco de atenção clínica” (APA, 1994; Turner, 1995). Essa nova categoria foi incluída porque “continuar a negligenciar as questões espirituais e religiosas perpetuaria as falhas que a psiquiatria tem cometido nesse campo: falhas de diagnóstico e tratamento, pesquisa e teoria inadequadas e uma limitação no desenvolvimento pessoal dos próprios psiquiatras” (Lu, 1994). Pela primeira vez, no DSM, há o reconhecimento de que problemas religiosos e espirituais podem ser o foco de uma consulta e do tratamento psiquiátrico e que muitos desses problemas não são atribuíveis a um transtorno mental (Lukoff, 1995). Os problemas religiosos são: conversão para uma nova religião, intensificação na aderência a crenças e práticas, perda ou questionamento da fé e novos cultos e movimentos religiosos. Dentre os tipos de problemas espirituais, temos: experiências místicas, experiências de quase morte, emergência espiritual e meditação (Turner, 1995). Como Gabbard (1982) afirmou: “É incumbência dos psiquiatras estarem familiarizados com o amplo leque de experiências humanas, saudáveis ou patológicas. Precisamos respeitar e diferenciar as experiências incomuns, mas integrativas, das que são (…) desorganizadoras”. Os benefícios almejados com a adoção dessa nova categoria são: aumentar a acurácia diagnóstica e reduzir a iatrogenia decorrente do diagnóstico equivocado dos problemas espirituais e religiosos, melhorar o tratamento ao estimular pesquisas clínicas e ao encorajar a inclusão das dimensões religiosas e espirituais da experiência humana no tratamento psiquiátrico (Lu, 1994).

O Brasil, devido à sua grande diversidade religiosa, encontra-se numa posição privilegiada para fazer avançar o nosso conhecimento sobre o tema. O estudo desses tópicos em nosso meio pode colaborar muito na melhor compreensão dos fenômenos tão disseminados e enraizados em nossa cultura, que é o que se espera da pesquisa nacional (Ramadam, 1996). Considerados como experiências subjetivas, os fenômenos religiosos e espirituais podem ser investigados com confiabilidade do mesmo modo que a ansiedade, a depressão ou qualquer outro grupo de vivências. Para estudar cientificamente essas questões, não é necessário tomar qualquer decisão sobre sua realidade objetiva. Elas podem ser pesquisadas em suas correlações clínicas com qualquer outro conjunto de dados (Ross, 1992; Hufford, 1992; King, 1998).

Problemas religiosos e espirituais necessitam ser objeto de mais pesquisas para melhor compreender sua prevalência, características clínicas, fatores predisponentes interpsíquicos e intrapsíquicos, evolução, relação com o ciclo vital e fatores étnicos. Duas áreas de particular importância para futuros estudos são o diagnóstico diferencial e o tratamento. Uma maior elaboração do diagnóstico diferencial entre os problemas espirituais e religiosos e os transtornos mentais com conteúdos espirituais e religiosos. Diretrizes de tratamento deverão ser estabelecidas para aliviar tais pacientes e evitar iatrogenias decorrentes do uso de terapêutica inadequada (Turner, 1995).

Baseando-se nessa nova classe do DSM-IV, tendo em vista a diversidade religiosa do Brasil e a carência de estudos na área, foi fundado no Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP o Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos (Neper). Seu objetivo é o estudo, a pesquisa e a assistência de questões religiosas e espirituais segundo o enfoque científico da moderna psiquiatria, não vinculado a nenhuma corrente filosófica ou religiosa. Seus integrantes já desenvolveram tese sobre psiquiatria e religião (Neto, 1997), livro e artigos sobre psicoterapia e religião (Amaro, 1994, 1995a, 1995b, 1995c, 1995d, 1996a, 1996b, 1996c), bem como pesquisa de campo sobre “cirurgia espiritual” (Almeida, 1999). Foi realizado um seminário sobre “Terapia Familiar e a Comunidade Religiosa” com a Dra. Martha Robbins, professora do Psychology Western Institute of Psychiatry em Pittsburg, EUA. Periodicamente, são realizados seminários de discussão de artigos e projetos abertos a todos os profissionais da área de saúde. Pesquisas estão sendo planejadas, assim como um programa de prevenção em saúde mental a ser desenvolvido nas comunidades religiosas. Almejamos que o Neper colabore na reversão da insensibilidade cultural da psiquiatria, na produção e difusão do saber ligado aos problemas espirituais e religiosos.

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